quinta-feira, junho 30

Luto

Não há ali defunto, mas o ambiente, o postigo que mesmo no dia soalheiro pouca claridade  deixa entrar, as viúvas quatro vultos de luto, agachadas em banquinhos, silenciosas, perdidas no hábito de fitar a lareira apagada.
Não há ali defunto, e Trás-os-Montes não é a Andaluzia, mas na quase escuridão parece que  encenam uma daquelas fotografias com que Josef Koudelka e Edward West souberam mostrar a intensidade e o recolhimento da dor feminina nas terras do Sul.
Quem entra sente-se intruso, hesita em dar as boas-horas, sabe que o desespero fez mais do que torná-las surdas. Sente que o silêncio e os xailes em que se escondem da cabeça aos pés são uma forma de mortalha, um preparo de enterro.
Pousa o embrulho que trouxe e sai, fecha de mansinho a porta, põe as mãos em pala a livrar os olhos da força do Sol. Talvez, também, a proteger-se da visão que teve e quer apagar.

quarta-feira, junho 29

Despedidas


Não é que o deseje, mas mandam as circunstâncias: na idade a que cheguei o relógio acelera, o calendário deixa de ser o fiel instrumento da conta dos dias, ambos se desarranjam e nenhum Einstein explicará a avaria.
Com surpresa descobri que, inesperada e involuntariamente, me ando a despedir. Vou desapertando laços, esquecendo gente, diluindo entusiasmos, olho em volta com o sentimento irreal de, num papel absurdo, me descobrir figurante num espectáculo de sombras.
À primeira vista mal se nota, são fugidios os sinais, mas de facto já cá não estou por inteiro, parte de mim como que me sobrevoa, desligada, etérea, indiferente ao que acontece, talvez já naquele estado segundo que por vezes afecta os poetas e os monges.
Que ninguém se zangue com o meu desapego. Não é indiferença, desamor, cansaço ou desatino, apenas o fatal aproximar da meta em que, pelo menos por cá, tudo finda.

terça-feira, junho 28

Álvaro

Com toda a simpatia que merece, ao ministro que nesta terra de doutores, professores, professores doutores e outras excelências, quer ser tratado por Álvaro, digo eu que estamos mal parados se, ignorando os mores nacionais, aplicar à Economia igual ingenuidade.
É que a respeito da questão que levantou, nem ele imagina as possíveis consequências, pois no desejo de ser gentilmente familiar bem lhe pode acontecer que ponham em dúvida o seu doutoramento, pelas mesmas razões que alguns põem em dúvida a minha licenciatura.
Eu explico. Por vezes bate aqui gente à porta, perguntando se "o senhor doutor está". A minha mulher, holandesa de nascimento e modos, se lhe cabe atender responde conforme as circunstâncias, e umas vezes diz "o José saiu",  ou "vou chamar o  José", e assim por diante.
Parece normal e correcto? Pois, caro Álvaro, não é, e as chamadas almas simples estão longe de sê-lo, de modo que se criou nelas a suspeita de que a minha licenciatura nem será das passadas ao domingo, mas inexistente.
- A mulher também nunca fala de doutor! É só José. Se fosse doutor era doutor, chamavam-lhe doutor.
De facto, por exemplo no restaurante de Moncorvo onde frequentemente almoço, rodeado de senhores doutores e senhoras doutoras, a gentil proprietária e o mais pessoal tratam-me por "senhor Rentes" (senhor José seria um grau abaixo) o que se assemelha a uma curiosa discriminação ou se deve ao facto de que, como já opinaram, não tenho "cara de doutor".  E o caso é que, além de não querer ser "doutor", tenho de aceitar que nem todos os doutores são iguais,  alguns são mais doutores do que outros e, ainda por cima, há os que têm fato, gravata e cara de doutor.
Portanto, meu caro, como você, à semelhança do Professor Marcelo – tratamento topo de gama – nunca chegará a Professor Álvaro, avise-se comigo e traga no bolso umas fotocópias do doutoramento, não vá correr os risco de que, entrando no restaurante com os "doutores" da comitiva, o tratem por "senhor Santos".
……………….
A tolice das formas de tratamento na nossa sociedade sempre me incomodou  e já antes toquei no assunto: http://tempocontado.blogspot.com/2008/05/ol.html

segunda-feira, junho 27

Esquerda? Direita?

Esquerda? Direita? Já não há. Ideia romântica, essa, de que os que tinham iriam perder e os despojados iriam ganhar. Com pequenas voltas e grandes reviravoltas, migalhas aqui,  dez réis de subsídio além, os que têm pouco morrerão de fome mais lentamente, vão ganhando algum a argamassar  os muros dos condomínios onde os outros digerem e repousam.
Isto explica ele do alto do seu metro e oitenta, bucho condizente, cara de revolucionário façanhudo.
Veio do mais pobrezinho, aos oito entrou para as obras, foi ganhando, tem carrinha, esta tarde de domingo traça no café a situação do país:
- Não sou como os políticos, que só querem para eles. Isto tem de mudar!
Os outros,  toldados da cerveja, aguardam o anúncio. Sente-se o ambiente de um soviete em preparo. No meu canto, distraio-me a imaginar punhos erguidos, foices e martelos, as bandeiras vermelhas, os gritos de "Abaixo o Capital! Viva a Revolução!"
Entretido nisso não oiço o que vai mudar, mas noto o silêncio repentino. Entra o senhor Mateus. Empreiteiro, homem de muita "massa". Entra o filho, que lhe pede a chave do BMW.
O senhor Mateus oferece uma rodada. Falamos do calor que está, do desastre que vai ser com a falta de água, mas um lembra que a televisão deu chuva. Zombamos, descrentes do profeta, que diz agora, a voz empastada :
- O 25 de Abril mudou muita coisa!
Uns encolhem os ombros, outros riem sem razão, o senhor Mateus anuncia que vai precisar de gente.

domingo, junho 26

O meu caso


Bateram à porta. Três. Camisa branca, gravata, calça vincada, pasta debaixo do braço, chapéu de palha. Desejaram-me um bom dia e a paz do Senhor. Agradeci quase de mau modo,  expliquei o meu desinteresse pela oferta da religião, em porta-a-porta ou outra, menti-lhes que de momento me ocupava tarefa mais urgente que o conforto da alma. Insistiram eles. Insisti eu. Embirraram. Embirrei. Finalmente lá se despediram com vénia e bênção
Coisa de minutos chegaram três que, no aspecto e na untuosidade missionária, replicavam os colegas. Repetiu-se a cena.
Buzinou a carrinha do padeiro e fui-me a perguntar se tinha cozido broa. Não tinha. Voltei-me, eram seis as mulheres de idade vária a fazer cerco, desejando-me bom dia e a paz do Senhor, acenando com folhetos, sorridentes, a mais despachada a segurar-me pelo braço, impedindo a passagem.
Aí zanguei-me, mas contive a praga, elas mantiveram o sorriso e a unção.
Não quero ser salvo por seita ou igreja, palavra que não quero, e dispenso intermediários. O meu caso com Deus é assunto particular.

sábado, junho 25

Da estupidez e da literatura


" A estupidez é igualmente um facto epocal, assume formas e conteúdos segundo a estação histórica e por isso contagia e diz respeito a todos, e não apenas aos outros. O autor desdenhoso, que parece troçar indiscriminadamente de todos, na realidade não fere ninguém, porque se dirige ao seu leitor fazendo-o crer que é ele o único ser inteligente no meio de uma massa de brutos, dirige-se de facto à massa dos leitores. A técnica geralmente tem êxito, porque o leitor pode sentir-se solicitado por esta excepção que o autor, desdenhando os demais, abre no seu caso, sem dar conta que o mesmo autor procede de modo igual para com cada um dos seus demais leitores. Mas a verdadeira literatura não é a que lisonjeia quem lê, confirmando-o nos seus preconceitos e nas suas certezas, mas sim a literatura que o persegue e põe em dificuldade, que o obriga a refazer as suas contas com o mundo e com as suas certezas.
Não seria mau que quem tende a considerar   "semi-homens " os seus vizinhos, só pegasse na pena para escrever o seu autógrafo."

Claudio Magris, Danúbio, pág. 202.

sexta-feira, junho 24

Mundo perdido


É um mundo perdido, passado, existem resquícios dele na tenacidade destes homens e mulheres que, quase centenários, cavam na horta, podam oliveiras, regam o palmo de terra que dá as batatas que, para eles, não são só comida, mas lembrança do tempo em que, com um naco de centeio, eram o sustento.
Saem ao romper do dia. Desconhecem horários e feriados. Interessa-lhe a água da rega e o florir das oliveiras, nada querem com o mundo onde se agitam os bisnetos e a gente de cidade, espécie estranha  que por vezes apercebem.
Frugais, forretas, temem o Senhor, desconfiam da lei e do forasteiro, o colchão é o seu banco, conhecem a valia das aparências e há muito aprenderam que, de todas, a da humildade é a mais segura.
Existem num mundo perdido,  desinteressados do ontem, indiferentes ao amanhã, presos a um hoje que infinitamente se repete e, em monotonia, se assemelha a uma eternidade.

quinta-feira, junho 23

Corpo de Deus



Trinta anos passados era a procissão do Corpo de Deus uma festa de arcos floridos, colchas nas janelas e muita gente. Os arcos desapareceram, depois as colchas, mas o ano passado ainda se espalhavam flores na calçada. Hoje, porque a idade do padre não deixa e a maioria dos fiéis mal se arrasta, haverá apenas uma volta em redor da igreja.
É assim que por cá, procissões, festas, gente, tudo vai acabando, e se anuncia o deserto.

quarta-feira, junho 22

Escrever


Escrever sobre isto? Aquilo? A senhora que a entrar na velhice se vê menina e faz beicinho entre as frases? A dor do ancião às portas da morte? Escrever sobre a admiração que me causou aquele livro? O desconforto do sol a pino? Os filetes de pescada, que não estavam como deviam estar? Sobre a cena que presenciei ontem no café?
Cinco senhores, cada um com sua cerveja. O cãozito aproximou-se a farejar as migalhas que havia debaixo da mesa e, autómatos mecânicos, cada cavalheiro presenteou-o com um pontapé. E mais um para apressar a despedida. O que não tem a ver com a crueldade para com os animais, mas é aviso de que devemos evitar os bichos que só são gente na aparência, na galhofa, e no gosto pela cerveja.
Adianta escrever? Não. Momentos, sentimentos e pensamentos são relâmpagos, e as palavras ficam sempre aquém.