quarta-feira, dezembro 7

No Arco de Baúlhe

É de poucas falas. Raro se lhe ouve comentar o tempo ou a política, se diz alguma coisa é para falar da quintazita que tem para os lados do Arco de Baúlhe, e dos problemas com o rendeiro, Sebastião de nome, por alcunha o "Trompete". Camaradas na Guiné, quis ajudá-lo, mas depois do 25 de Abril veio com mandonices, o que tinha sido amizade azedou, desde esse tempo são cão e gato.
- A Rosalinda bem diz que feche os olhos, deixe passar, pense no coração. Mas custa muito, sabe. Poucos aguentariam.
Por serem as queixas contra o "Trompete" o tema favorito, surpreendeu-me a semana passada o não aludir ao caseiro, mas entrar em considerações filosóficas sobre a vida a dois, o delicado equilíbrio que isso requer, os desentendimentos que começam por um nada e destroem a paz doméstica.
- Em Janeiro vou fazer sessenta.
Olhou-me, talvez à espera de comentário, mas receando dar passo em falso respondi com as banalidades da saúde, da boa aparência, que ninguém lhe daria a idade.
- Para ser franco, nunca me senti tão bem.
E de súbito, como se eu tivesse podido ler-lhe os pensamentos, resmungou que era esse o problema.
- Como?
- É mulher com cabeça, vê a televisão, os programas todos. E tem as revistas, fala com as amigas! Isto já não é o antigamente, que diabo!
Dando-se conta pelo meu modo de que não estava a compreendê-lo, segredou-me o que Rosalinda na cama lhe recusa.
- Não pode ser, pois não? Então para que é que a gente se casa?

Cada um tem as suas aberrações, sonhos e desejos, mas naquela idade, com aquele corpo, custa-me imaginar Dona Rosalinda, vestida como ele quer a fazer o que ele pede.