segunda-feira, novembro 29

O saber

Mesmo aqui na aldeia, onde os analfabetos são maioria, não há dúvida que isto é gente de saber. Colheita, poda, lavra, sementeira, regadio, pisa das uvas, feitura do azeite, ultimamente a papelada dos subsídios, a mim e muitos mais levam de longe a palma.
Sei doutras coisas, um poucochinho, o suficiente para me abismar com o saber alheio, e para que não encontre palavras com que diga a minha admiração pelos que são capazes de mandar sondas para Marte ou sinais de rádio para a escuridão infinda do Universo.
Numa ou noutra altura, porém, em vez de me espantar ou tornar invejoso, o saber alheio põe-me de mau humor. Pela simples razão de que não duvido do saber que assim se apresenta, mas porque me deixa contrafeito e duvidoso de que aquilo não seja genuíno, antes uma charada composta para fazer figura. E eu suporto mal ver alguém a fazer figura,  a soprar névoas que escondam o vazio da pequenina cabeça.
Que mensagem quererá passar quem escreve uma prosa assim?

"Associa também a caracterização sociocomportamental  de grupos de diferente extracção económico-social às movimentações (de variável valor táctico) no campo literário português, que tinha tradicionalmente um espaço-tempo privilegiado para o confronto dos estilos epocais (hegemónicos ou anacronizados, ou emergentes). Nesse sentido, o conhecimentos das facções intergeracionais e dos matizes dos subsistemas estilístico-peridiológicos não deve alhear-se das indicações e valorações."

domingo, novembro 28

Domingo

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sábado, novembro 27

A primeira geada

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O amigo


Há um tipo de amizade que nos vem pelas diversas razões da profissão, da vida social, do parentesco, às vezes por encontros fortuitos, e quando julgávamos poder manter confortável distância e algum resguardo do nosso sossego, eis que o amigo carrega no acelerador da afeição.
Chovem convites para festas de aniversário, casamentos, para jantares e reuniões, almoços, conferências, visitas ao Alentejo – "Espectacular, o nosso Alentejo! Conhece?" – montarias, golfe – "Não me diga! Nunca jogou? Excelente para a forma".
A cada mail ou telefonema já não é só a cabeça a reagir com fúria, mas o estômago que faz  horas extraordinárias na produção de suco gástrico. Quando não há desculpa possível e nova recusa seria malcriadez, vê-se a gente em tête à tête , sem possibilidade de escape, estende ele as garras do seu ego e tem-nos ali presos, imóveis, embasbacados.
Quanto fala! Quanta coisa sabe! De agriões e vinhas do Douro, energias renováveis, Art Nouveau, Mondriaan, a guerra na Guiné – "Estive lá de 69 a 71. Um inferno, mas uma experiência fascinante."-  de chá verde, bolo-rei,  da linha do Tua, do preparo da lebre com castanhas…

Comecei a desenhar e confesso que caí no exagero, pois não conheço ninguém que se assemelhe ao retratado. Há, sim, uns três ou quatro que, se os juntasse, dariam um personagem ainda mais cansativo.

quinta-feira, novembro 25

Compadrio

Escrito ontem, seriam dez da noite.

Ainda não terminou, e depois de alinhavar isto não tardarei a deitar-me, de modo que posso dizer com verdade que o dia de hoje foi dia perdido. Culpa minha, logo de manhã a irritar-me com a leitura de um texto num blogue, tão mesureiro e extenso nos rapapés, que me perguntei que interesse ou benefício leva alguém a tanta genuflexão.
Era sobre um livro. E mais pr'aqui, mais pr'ali, chegue-se cá para que lhe coce melhor as costas, e vai um beijinho, e como escreve bem, grande felicidade um talento assim, etc.
Reli, verifiquei se quem escrevia aquilo era quem assinava, deu-me depois qualquer coisa entre o ataque de riso e o ataque de nervos.
Porque é compadrio demais. Lê-se à esquerda, à direita, é um bajular repetido de jornal para jornal,  de revista para revista, blogues idem, conversas idem dito.
Às tantas ouvi cá dentro um sinal de alarme, a avisar que antes de continuar metesse a mão na consciência. E lá vieram os meus momentos de compadrio. Pequenos, acho eu, mas se você os conhecesse era capaz de discordar. Recordei o compadrio de amigos do peito, de um ou outro compincha, de desconhecidos inocentes e outros nem sempre bem intencionados. Fiz as contas, chegando à conclusão  que de uma maneira ou outra não se vive sem compadres nem compadrio. O problema está na dose.

Reparação (2)

Como anunciado aqui, o prazo terminou. O prémio não será atribuído, pois nenhuma das refilonas sequazes do cabo da GNR se candidatou a ele. Agradeço sim, muito, e consolado, às oito simpáticas que me deram a saber que partilhavam o meu ponto de vista.

terça-feira, novembro 23

A pose

Entre os elementos capazes de facilitar a vida social, dá-me a ideia que a pose é número um.
Ainda que honesto e capaz, primeiro-ministro sem pose correspondente, impõe-se muito menos que um primeiro-ministro aldrabão, mas de sorriso esperto e com os ademanes da necessária pose. Um candidato à presidência da República queremo-lo nós com pose adequada: modos de senador romano, voz tonitruante, gestos de ameaça, sorriso avuncular.
De nada conta a capacidade, vale a aparência. Impressiona-nos a arte de um poeta? Pode ser. Mas cresce a admiração que lhe temos se, com gedelhas em farripas, ar desvairado e olhos em alvo, mostrar  a imagem clássica do vate. Bem pode o sacerdote ser brilhante pregador, vestir à antiga batina e cabeção, infeliz dele se subir ao púlpito sem a aparência de quem priva com o Altíssimo.
A pose é a chave, o lubrificante do dia-a-dia da sociedade, a indispensável máscara. A sua falta complica a vida do próximo e a nossa, pois sempre nos acham – somos – melhores e mais suportáveis quando fingimos.  

Disseram ontem de mim que sou sujeito difícil, e provavelmente sou, mas acontece que sei pouco de teatro. E você?

segunda-feira, novembro 22

Up-to-date

Soubesse eu calar. Soubesse eu pôr mais vezes freio à pressa que me toma de dizer o que penso. Fosse eu capaz de travar as palavras antes que elas, como agora, saindo-me da boca, ricocheteiem que nem balas de borracha contra a alma da pobre que tenho defronte, e que, tomada de surpresa, em vez de se defender deixa cair as lágrimas.
Dá-me pena, se bem esteja ao corrente de que mulher tem o pranto fácil, desculpo-me, falamos doutra coisa.
Passamos à fase dos sorrisos, mas bem é que lhe seja impossível ouvir o zunzum do diálogo que sobre ela, em simultâneo e noutra dimensão – No cérebro? Na alma? – mantenho comigo mesmo. É bom também que não veja a radiografia que de lá sai.
Porque ó senhores! Ó pais! Ó namorados e maridos de mulheres assim! Como é que aguentam?
Foi ontem, mas continuam a ressoar-me aos ouvidos – e não só - os Fuck you! e os Oh my God! dos filmes e da bacoquice. Fecho os meus, mas continuo a vê-la revirar os olhos como se fosse da televisão. E a fazer beicinho. E a dizer asneiras. A confessar que se ele quisesse "fodia com o Banderas".
Fodia! Dá a impressão de atirar aquilo em maiúsculas, talvez para que eu me dê conta de quanto é moderna, ou a ver se me choca. Não choca. Em choque ficaria ela se soubesse como me mantenho up-to-date.

sexta-feira, novembro 19

O parolo

Estranho tipo o que promete e não cumpre, combina e não aparece, pede e não retribui nem paga. Será desleixo? Tara? Pouca vergonha? Pode ser tudo isso, acrescentado de boa dose de estupidez, vaidade e exacerbado sentido da própria importância. Parolice também.
O parolo tem Rolex, Mercedes, fatos do Zegna, já foi às Seychelles, mas ignora que para além do fato, e do limitado campo do seu entendimento, há um mundo onde as pessoas não são menos por serem pontuais ou cumpridoras. E isso, que ele morrerá sem aprender, é democracia: o sistema onde todos são iguais nos direitos e nos deveres, e não se sentem menos nem rebaixados quando cumprem o que prometem.

quinta-feira, novembro 18

Reparação

Um sentimento de culpa não tem de ser fonte de remorso e para a asneira não há monopólio. Mas verdade é que dizemos coisas sem pensar nas consequências, damos passos em falso, empurrões nos melhores amigos; e por vezes, descrendo do impacto das palavras, ou confiante de que quem nos lê adivinhará que piscamos o olho, que o azedume é só  fingimento, atrevemo-nos a pontificar.
Infelizmente, no universo Internet há sempre uma alma que se sente ferida, alguém que se diz "isto é comigo", um ou outro que, mais destravado, esquece as boas maneiras que lhe ensinaram.
Na semana passada dei aqui umas inócuas picadelas num certo tipo de rapariga, e então não é que algumas, ignorando o substantivo raparigada, e com preguiça de clicarem no Priberam, desataram a barafustar (por mail, evidentemente) que as insultava, diminuía, que o texto ressudava  um machismo bacoco, que eu faria bem em não tocar no que não entendia. Ainda metiam a minha idade pelo meio, com um palavreado que não vou repetir.
Jesus Cristo também perdoou, e eu, homem de paz, além de perdoar peço desculpa pelo mal que não faço, bato contrito no peito um mea culpa, dobro o joelho, mas pelos jeitos há ocasiões em que isso não basta.

Assim, dando ouvidos a uma amiga de bom aviso, proponho uma espécie de reparação: sentiu-se magoada, insultada ou triste com aquele texto? Pertence à categoria citada, a das raparigas até aos quarenta? Escreva então em quarenta ou cinquenta palavras o motivo do seu desprazer e remeta para jrentes@xs4all.nl .
Na possibilidade de que haja mais de uma resposta faz-se sorteio (papelinhos num chapéu) e a vencedora terá direito a prémio: um conto curto, muito curto, mas original, e até manuscrito. 

PS. O prazo de envio termina a 25/11.

terça-feira, novembro 16

Momentos (5)


Porque a natureza humana em toda a parte é a mesma, acontecem cenas destas na Mongólia e em Moscovo, em São João da Madeira, Chicago, Pontevedra e Tabuaço, entre os beduínos e  os esquimós, na Patagónia e na Palestina. Dão-se de certeza também entre os chimpanzés, nossos parentes chegados. Chança. Arrotos de postas de pescada. Urgência de mostrar.

Último domingo. Restaurante modesto. O prato do dia são sete euros e meio,  para extravagâncias há polvo à lagareiro, vinte e cinco euros para dois, cabrito à angolana idem.
Sala cheia, aí à volta de cinquenta pessoas. Entram eles e dão nas vistas. Loira artificial, trinta e poucos, miudinha, sorriso largo, o peso do bebé e os tacões agulha a atrapalhar o andamento. O  avô atrás, frágil, melancólico. Ele fecha a marcha e quase todas cabeças se voltam. Mãos nos bolsos, quarentão, grandão, pesado no andar, melenas dum preto retinto de drogaria.
Pelo modo são gente de longe, mas a ele, minhoto, alentejano ou da costa, acho-lhe a aparência daqueles turcos que nos campeonatos levantam halteres de cento e cinquenta quilos. Será empreiteiro, homem da sucata, mestre de obras, capataz, mas de seguro não é tipo que tenha comprado o "2666" e ande a anunciar aos amigos que quando tiver tempo vai "atacar o Bolaño".
Sentaram-se duas mesas adiante, esqueço-os, a minha atenção vai para a lula grelhada que tenho no prato (€ 10).
De vez em quando o bebé choraminga, a mamã faz cri-cri-cri, o avô continua nas suas sombras, o gigante – as cabeças dos outros não lhe chegam aos ombros – consulta demoradamente a lista e, sem pedir opinião à companhia, encomenda febras grelhadas para três, batatas fritas e grelos.
Minutos depois a patroa, amiga de há muito, passa a atender outra mesa, detém-se sorridente um segundo e murmura-me ao ouvido:
- Já ganhei o dia! Aquele senhor quer que lhe abra uma garrafa de "Barca Velha" da colheita de 2000. Duzentos euros!

Dois dias depois o remoinho de pensamentos acalmou, mas a recordação do momento não passará tão cedo, como não esqueço as cenas que ouvi contar no tempo do Volfrâmio. Três pratos do dia e um "Barca Velha" de 2000!

domingo, novembro 14

O orgasmo

Bom-dia a todos. Importam-se de fechar a porta?
Vamos hoje tratar do orgasmo. Por duas razões. Uma prática: como sabem, nos media tradicionais o sexo sempre foi, é, continuará a ser, o grande propulsor de receitas e lucros. Na blogosfera, porém, o que aqui nos interessa, embora não se ponha nela a questão de dinheiros, um bico de seio, cópula grosseira ou estilizada, relato de orgia, amor lésbico, enrabanços no seminário, Pégasos a desflorar meninas, tudo o que toque o mais fundo dos impulsos humanos  resulta num sensível, por vezes mesmo extraordinário, aumento do número de visitantes , links e referências.
A segunda razão é pedagógica. Creio que para sossego do corpo, e mais ainda do espírito, há necessidade de descontruir a noção do orgasmo. Longe de mim pretender negar o fenómeno a que os franceses tão subtilmente chamam le moment suprême. Infelizmente, se há dele testemunhos são inexistentes as estatísticas, anda o mundo fiado no delírio de escribas que, no correr dos séculos, compensam a sua impotência e a ignorância do assunto com delírios da imaginação.
Porque vamos lá ser francos: mesmo que em todos viva a ânsia de atingir o zénite, sabe a maioria que subir a essa altura é dado a poucos. E assim, infelizes os que nesta manhã dominical, hora propícia às lides matrimoniais, gritam e roncam a sua ilusão. Porque o orgasmo, o genuíno, diz quem sabe, é todo do íntimo, um clarão interior, raro, perfeito, secreto, indizível como todos os milagres.
Passem bem. Deixem a porta aberta.

sábado, novembro 13

Tiro ao alvo



A N220 atravessa Carviçais numa recta de quilómetro e pico e, com casas de ambos os lados, de certo modo funciona como rua da aldeia.
No ano passado melhoraram o piso - que bem precisava - puseram sinais por toda a parte – nem todos úteis – e colocaram uns oito daqueles obstáculos que obrigam a abrandar o  andamento. 
Talvez porque os tinham de sobra, entre os dois obstáculos mais espaçados, no trecho em que o ás do volante se aborrece de tanto saltar e acelera, colocaram este curioso painel.
Alguns acharão que é carinhoso aviso, a mim dá-me a ideia de um convite ao tiro ao alvo.

sexta-feira, novembro 12

"Ernestina" 3a edição


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Uma 3a edição? Na pátria nunca me tinha acontecido, pelo que estamos de parabéns, a Quetzal e eu.

quinta-feira, novembro 11

A raparigada

Há os que só vêem raios de sol, amanhãs que cantam, para os sombrios tudo é negrume, e entre esses extremos anda você e ando eu. Ora a alegrarmo-nos sem razão nem certeza  que o sol há-de brilhar, desesperados noutras alturas por contratempos que o não são mas parecem. Há quem diga que é do feitio, juram alguns que a vida é assim e não há volta a dar-lhe.
Pois será, mas de nada serve a sabedoria, própria ou alheia,quando tudo sai pelo avesso e um nada faz desabar o Carmo e a Trindade.
Acontece que por artes do acaso e da curiosidade que mantenho, nestes últimos dias me deu para fazer assim a modos de uma pesquisa em blogues femininos. Razões tinha umas quantas, sendo a mais válida o sentimento de que entre o geral das raparigas (até aos quarenta são raparigas) e a minha ideia do eterno feminino, não se abriu o clássico fosso, mas me vejo em situação idêntica à da jangada que Saramago fez da Península: estou a afastar-me.
Evidentemente que com a minha idade pode isto prestar-se a remoques ácidos ou cómicos, mas seja como for acho quase um dever alertar a raparigada de que vai por ruim caminho.
Nos blogues por onde passei (não tenciono repetir) saltou-me à vista um vocabulário de machismo chulo (sim, machismo), com abundância de caralhos e caralhadas, muitos foda-se, puta que pariu, mais merda que numa fossa de retrete. Conas e mamas quase não encontrei, pelo que me parece que a raparigada, que já se apoderou dos cigarros, da cerveja, do volante e das botas militares, tem certo pejo na originalidade.
Imita os gajos, mas falta-lhe tesão para ir mais além.

terça-feira, novembro 9

Palavras

O modo como ela sussurrou aquilo ao vê-lo entrar no carro, e no mesmo instante me vieram à memória frases que na meninice prenunciavam cenas de comédia bufa.
- Olhe a pressa! Vai ver a amásia!
Deu uma piscadela, continuando: - Deixá-lo ir! A minha santa mãe, que Deus tenha, bem dizia: quando casares come sempre antes de ele chegar. Se te bater já tens a barriga cheia, se vier bem disposto voltas a comer.
Sabedoria que parece de outras eras, mas por estas bandas mais corrente do que pensam os inocentes. Antigo, sim, o vocabulário. Porque quase desapareceram as amásias, de ninguém se diz que anda  amigado ou vive junto, e de amizades como unha com carne raro se ouve falar. Outras palavras há que, quando por acaso surgem dos recônditos, ainda me põem em alerta.
-  Ó mãe, o que é panasca?
A lambada, se  me tivesse apanhado, era das de perder os sentidos, pelo que depois, cauteloso por experiência,  preferi esperar anos do que querer saber logo se fressureira, o que diziam que a Teodora era nos armazéns do Calém, seria emprego que pagava melhor do que engarrafadeira.