sexta-feira, janeiro 2

A ama-de-leite

Travei a tempo, mas ao começar isto quase ia caindo na tentação folclórica de alindar o antigamente. Bem fiz, porque não há alindamentos nem saudosismos que masquem a realidade da miséria. E grande miséria havia. H.G. Wells andou pelos arredores de Lisboa nos anos 30, descobrindo no “jardim da Europa à beira-mar plantado” uma pobreza mais dramática e miserável do que a que vira na Rússia.

Nesse tempo, o da minha infância, aqui na aldeia as mulheres usavam saia até aos tornozelos, blusa de gola, corpete, lenço na cabeça, xaile pelos ombros. Em geral mais luto que cores garridas. Um surro que, quase geral, só mais tarde me faria espécie. Tinham o ar de avantesmas e, por muito que sorrissem, a mim, criança impressionável, assustava vê-las entrar na igreja, onde fingindo rezar a Deus e aos santos, de certeza contratavam com o Diabo.

Delas todas, a que eu mais temia tinha estatura de granadeiro, um rosto bruto, olhos de loucura. Ao acaso duma conversa, soube ontem da sua história.

Paria filhos uns atrás dos outros e, uns atrás dos outros, todos morriam em pouco tempo. De fome. O leite que os manteria em vida precisava-o ela para sobreviver, para o seu “trabalho” de ama dos ricos.

Talvez mais que a miséria, a dor, o ódio, a tristeza e a impotência devem-lhe ter transfigurado o rosto que, de tão disforme, justificava a alcunha que a distinguia: a “Mete-Medo”.