domingo, julho 20

Alforges (8)


De casaco e gravata

Uma fotografia tirada no dia dos meus dez anos mostra-me pela primeira vez de gravata. Recordo vagamente que minha mãe, cheia de impaciência e descontente com o resultado, várias vezes fez e desfez o nó, até que por fim lhe conseguiu dar o volume preciso. Quando lhe perguntei a razão de tanto incómodo, respondeu-me ela que nos trajes e nos modos era preciso parecer bem às pessoas.
A noção do parecer bem e as suas exteriorizações, sofreram desde essa época longínqua mudanças de tal modo radicais, que hoje só são aceitáveis quando se lhes pode acrescentar a desculpa da caricatura ou do disfarce. Como num carnaval. Ainda se vêem homenzinhos de dez anos com gravata nas festas e nos casamentos, mas com carta branca para se lambuzar e andar aos coices. Porque é só a brincar, é só disfarce. Um ministro em uniforme de grande gala, bicórnio, condecorações, é notícia de primeira página e corre o risco de ser ridicularizado. Quando nas cerimónias mais solenes os soberanos ainda reinantes deitam pelos ombros o manto de arminho, logo se recorda a cómica autocoroação do imperador Bokassa no seu efémero império africano. Ainda há quem tente vestir-se para “parecer bem às pessoas” num concerto, num jantar. Simplesmente, um pouco de elegância sóbria no traje ou apenas o decoro, logo destoam entre os jeans esgarçados e o desalinho em moda. Qual o homem que se irá barbear, quando o preceito corrente é a barba de três dias?
Ao escrever isto poderei dar a impressão de que suspiro pela formalidade do passado ou me incomoda a liberalidade do presente. Assim não é. Estou mesmo suficientemente entranhado pelo espírito do século para, de vez em quando, me permitir também liberdades com que antes não sonharia. Poucas, diga-se de passagem, e em escala modesta. Mas o que de facto me transtorna é a minha insegurança perante as regras de etiqueta vigentes ou, melhor dizendo, a subtileza dos ditames a que elas obedecem e a celeridade da sua mudança. Porque de ditames se trata, e rigorosos. O que à primeira vista aparenta ser licença, no fundo é decretado e obriga a uma estrita arregimentação. Ao observador perspicaz não escapará que as cores, os modelos, ademanes e cortesias que no passado eram válidos durante anos, agora são-no no máximo durante uma estação, e já na seguinte se tornam anátema. Que se insista em usá-los e é-se logo apontado como excêntrico ou incorrigível bota-de-elástico.
Mais perturbador ainda, a regra de hoje tem tendência para ser o contrário da de ontem. Além disso, por mais tola que a regra seja, o bom-tom actual ordena que se não exteriorize o pasmo ou a irritação que ela nos causa. O mandamento é o da anuência sem reservas. Que nos seja imposta a presença dum poeta aviltado, de camisa aberta até ao umbigo e pés fedorentos em sandálias do tipo Jesus nikes, a nossa obrigação é manter o sorriso, como se não tivéssemos opinião nem olfacto.
Uma dama insiste em chamar a atenção para as suas pernas recobertas com absurdas meias de rede representando pássaros e galhos, cabe-nos não ter opinião nem olhos. Outra dama, com inocência ou de propósito, permite-se um trajar obsceno, é nosso dever, conforme manda a regra, acharmos tudo bem, tudo aceitável.
No fundo, e mais que os exageros, que são de todos os tempos, é esse assentimento automático o que faz desesperar. Na verdade não são as modas que importam, pois por natureza são passageiras. Preocupante é, sim, o desprendimento com que elas marcam as relações mútuas. Cada um de nós torna-se uma ilha, isolado dos outros pela espessa névoa do interesse fingido e da falsa aceitação sem nenhum desejo de, para aliviar o isolamento, se dar ao trabalho de realmente querer “parecer bem”.