sexta-feira, julho 18

Adeuses

Uma tarde, anos atrás, no hall do aeroporto de Lisboa, chamaram-me a atenção dois grupos de ciganos que, silenciosos, se encontravam a pequena distância um do outro.
A calcular pelo luxo do vestuário e a quantidade de ouro e jóias que os enfeitava, gente abastada. Um grupo, rodeado de malas caras, ia partir para o Brasil. O outro grupo era por certo de familiares e amigos que tinham vindo despedir-se. Uma cena fora do comum, pois de toda evidência aquela gente se pertencia e contudo não trocava palavra. O único sinal de emoção era o pranto de uma anciã no grupo que ficava, e que duas mulheres apoiavam, sussurrando-lhe palavras de conforto.
Afastei-me, receoso de ser indiscreto, mas continuei a observar a cena que tanto me intrigava. E descobri que o que primeiramente me parecera indiferença entre eles, era um ritual. Um ritual de despedida. Tão harmonioso e cheio de carinho que quase senti inveja de não lhes pertencer, e ao mesmo tempo recordei com desagrado os abraços, a excitação, o triplo beijo, as porradas nas costas e os acenos desvairados que são a marca corrente dos nossos adeuses.
Um homem de idade, com a postura e a calma do verdadeiro chefe de família, ia ao grupo que partia, segurava uma pessoa ou uma criança pela mão e levava-a gentilmente para junto dos que ficavam. Aí parecia escolher alguém, colocava nas mãos dessa pessoa as mãos do viajante e afastava-se um momento. Tive a impressão que os dois trocavam então frases idênticas numa língua desconhecida, repetiam certos gestos, se tocavam ligeiramente as faces uma única vez. Quando todos os que iam viajar tinham tomado parte na cerimónia, pegaram na sua bagagem e com um último olhar ao outro grupo, mas sem qualquer gesto ou aceno, desapareceram na multidão. Entre os que ficavam só a anciã continuava a chorar. O homem de idade tirou solenemente o chapéu e colocou-o contra o peito, num gesto reverente, enquanto os restantes permaneciam quietos e tensos, como quem guarda um minuto de silêncio.
Achei solene e bonito. Depois fui-me à vida, a remoer como me desagradam as nossas despedidas. De pequeno eram sempre enormes emoções, soluços, rios de lágrimas. Íamos já longe a caminho do comboio e ainda me parecia ouvir, ecoando pela serra, as lamentações bíblicas da minha avó, queixando-se de que aquele adeus era o último, que nunca mais nos tornaria a ver.
O resto da família e os vizinhos participavam nesse teatro. E isso, que duas vezes por ano gerava na criança que eu era uma grande aflição, tornou-se cicatriz indelével no espírito do adulto.
Talvez que por esse e outros traumas semelhantes, estações e aeroportos sejam para mim calvários. Ver num cais uma multidão que gesticula, que chora, agita lenços e atira beijos a um navio que se afasta, provoca-me uma angústia indizível.
Se vou de viagem, prefiro partir sem acenos, nem olhar para trás. Mas há os irremediáveis deveres da cortesia, e então mesmo o preparo da despedida mais simples se me torna bicho-de-sete-cabeças. Como dizer adeus de maneira sóbria, conveniente? De que modo? Com que palavras? Dantes escondia a minha perturbação atrás de saudações que, por serem estrangeiras, me pareciam neutras. De preferência dizia ciao, adiós, au revoir, goodbye... Mas procurando no mais fundo de mim próprio descubro que também isso já não é solução, porque finalmente, depois de tantos anos, continua a pesar-me o dizer adeus.