segunda-feira, junho 9

A realidade neerlandesa em forma de sonho (4)

Com ou sem hibernação que me permita tomar distâncias, alijar os maus pensamentos e observar com olhos ingénuos, a verdade é que, actualmente, se me torna difícil o julgar sem preconceitos a sociedade que me rodeia. Não somente porque a Holanda se me tornou tão cara como a minha primeira pátria, mas porque, vivendo há tanto tempo nela, tendo-me imbuído dos seus usos e costumes, da sua língua, as impressões que agora recebo forçosa­mente não são como as do começo.
O estrangeiro que fui, quando o recordo parece-me ter sido uma identidade de empréstimo, um papel de actor, uma distração do Destino que primeiro me fez errar por outras bandas. Porém, em certas ocasiões, o holandês em que me tornei também me parece irreal, porque aos sentimentos, às ideias e às visões adquiridas, constantemente se sobrepõem as visões, as ideias e os sentimentos da minha vivência anterior.
Sobrepõem, aliás, não é bem o termo, pois sobreposição implica ordenamento, e isso definitiva­mente lhes falta. Se os sentimentos e os pontos de vista se sobrepu­sessem, nada custaria arrumá-los doutro modo ou noutras sequências. Facto é que eles se misturam e antagoni­zam, que dentro de mim ruge em permanência uma batalha entre duas maneiras diferentes de ver e de sentir.
Isso há muito me levou à conclusão de que poucas das minhas críticas à Holanda ou aos holandeses podem ser tomadas a sério. O que a alguns parecerá veneno rabioso, não é mais que exercício literário; o que outros considerarão crítica fundada, é apenas um irreverente piscar de olho.
Além disso, sejamos francos, que vale o juízo de um indivíduo sobre um país? Quem sou eu para julgar? A única autoridade que possuo é aquela de que eu próprio me revisto, a de escritor. E na medida em que ninguém a ela põe peias, não é virtude por aí fora dizer o que me apetece da maneira que suponho mais atracti­va. Dando forçosa­mente mais valor ao efeito do que aos factos. Se bem que dos juízos sobre os países e os seus povos também se possa dizer o mesmo que se diz dos tiros de escumilha: há sempre um grão que acerta no alvo.
Todavia, se fosse hoje, eu creio que não teria escrito do mesmo modo o livro que vinte e cinco anos atrás escrevi sobre os holande­ses, pois me incomoda vê-lo cheio de certezas aparentes e juízos que, parecendo definitivos, definitivamente o não são. Se antes de morrer ou de se me desarranjar a cabeça tiver ocasião de voltar a escrever sobre este país - não como agora, em ligeira conversa, mas num livro maduramente pensado - creio que começarei por procurar na história de Portugal e da Holanda os laços que são bem mais remotos do que os que existiram no séc. XVI, quando ambos os países eram poderosos e, com a Espanha, se disputa­vam a supremacia dos mares e do comércio com o remoto Oriente.
A navegação dos portos da Holanda e da Flandres para os de Portugal e vice-versa, documentados no séc. XII, deve datar de muito antes. E não é preciso repetir a importância que teve a vinda dos judeus portugueses que aqui procuraram asilo. Novidade para alguns será, de certeza a notável presença dos holande­ses que no séc. XVII se estabeleceram nos Açores.
Em lugar de oposições procurarei encontrar concordâncias e paralelos, embora para realizar tal objectivo defronte uma dificuldade de monta. Provavelmente a maior que se põe a quem, como eu, em simultâneo vive duas vidas, sente com duas sensibilidades, fala e pensa em duas línguas, pertence a um país rico e a um país pobre.
Aos que não se encontram em circunstâncias semelhantes, o sofrer de uma situação assim parecerá rebuscado, um exercício de intelectual que procura obstáculos onde os não há, um artifíci­o para criar conflitos existenciais.
Nada menos justo. Quando critico o holandês na sua rudeza, no desprezo que em geral demonstra pelas coisas da sensibilidade, ou mesmo no racismo de alguns, não me fica a impressão de estar a criticar estranhos, mas gente minha. Por sua vez, quando rio do desleixo crónico que os portugue­ses mos­tram, da sua aparente incapacidade de, duma vez para sempre, libertarem Portugal da condição de parente pobre da Europa, também não estou a falar de quem não me interessa, mas dum povo a que tão intensamente pertenço, ao ponto de me iludir que todos eles são meus irmãos.
Desse modo, e em quase tudo dividido em dois, ao mesmo tempo que zombo do afã maníaco com que os holandeses viajam, lamento que os portugueses possam viajar tão pouco; se me irrita a falta de maneiras duns, irrita-me igualmente a cortesia por vezes bizantina dos outros; quanto mais aplaudo a eficiência dos primeiros, mais me dói que os segundos com tanta frequência sofram de desorgani­zação.
Não seria fácil realizá-lo, mas contornando os obstácu­los que a minha própria vida me levanta, talvez valesse a pena tentar. Se bem que, em situação semelhante, a cada mostra de objectividade se contrapõe uma suspeita de partidarismo, cada cumprimento recebe logo o contrapeso duma crítica.
O livro que eu um dia gostaria de escrever sobre a Holanda, além dos laços que já apontei e que, com outros, unem os "meus" dois países, seria pois aquele em que eu conseguiria o tour de force de passar ao papel, sem malícia nem bonitezas literárias, os meus quarenta anos de vivências aqui. Acrescentan­do-lhe o muito que no país admiro, aquilo que nele me fascina, as razões porque preferi ficar quando poderia ter partido, a saudade que me toma quando me encontro longe.