terça-feira, janeiro 29

A quinta, as camélias, a menina e o Mobutu

Filho de gente humilde, António Rodrigues Alves Faria nasceu ali perto, em Matinho de Forjões, cerca de 1860.
Aos catorze anos foi de marçano no Porto e quase logo em seguida, sem papéis nem dinheiro, abalou para o Brasil escon­dido num navio de carga.
Lá trabalhou, sofreu, poupou, comer­ciou. No começo do século XX, com o título de visconde e riqueza de mili­onário, tornou ao lugarejo donde tinha saído de pé descalço.
Comprou terras sem conta. Construiu uma escola. Comprou a Quinta de Curvos que estava ao abandono e levantou-lhe os muros arruinados, substituiu os velhos portões de madeira por outros de ferro, encimou-os quase todos, como ainda se pode ver, com as suas iniciais e a data: ARAF-1910.
Mandou fazer também uma luxuosa mansão e cercou-a de jardins, de pomares, de lagos grandes, lagos pequenos, mirantes, grutas artificiais de cimento armado a imitar cortiça, como era moda nesse tempo.
Foi infeliz nos amores. Faleceu sem completar os sessenta e uns primos afastados, seus únicos herdeiros, gente boçal, indiferente, esbanjaram a herança, venderam a quinta a um homem de Lisboa, que a revenderia a outro.
Depois, de mão em mão, de desleixo em descuido, a cerca foi derruindo, as silvas foram avançando, a madeira da casa apodreceu, as traves cede­ram, caiu parte do telhado, caíram as chaminés.
No começo dos anos sessenta, ansioso por se ver livre dum trambolho que não dava lucro que chegasse para pagar as contribuições, o prop­rietário pô-la à venda por uma migalha.
Um inglês pagou essa migalha e, tal como o brasileiro tinha feito antes dele, deu à quinta o esplendor antigo. Restaurou-se a casa, limparam-se os campos. Alargaram-se grandemente os jardins porque mister Regal, homem solitário, da infinidade de paixões humanas apenas tinha uma: a cultura das camélias. E de todas as recom­pensas do mundo apenas almejava uma que lhe coube muitas vezes: ganhar nos concursos o primeiro prémio, a Camélia de Ouro.
Na Primavera de 74, desafeito a rumores depois de tantos anos de paz, Leslie Regal assustou-se com a Revolução dos Cravos e as ameaças que a plebe vinha gritar aos portões. O seu único desejo era fugir. Se o vizinho pagasse seis mil contos - bem menos que o valor dos muros - ele entregava-lhe a propried­ade logo ali.
O vizinho achou caro. Também achou complicado que o bife quisesse o pagamento em libras ou dólar­es. Então não era o escudo uma moeda forte? E farejando a oportunidade disse que lhe parecia caro. Oferecia a metade.
O inglês teve uma reacção inesperada. Queixando-se de que se sentia cada vez mais só, cada vez mais mais cansado, se o vizinho aceitasse trocar a filhinha de quatro anos pela prop­riedade...

Ao contar-me essa parte da estória a rapariga tinha sorrido com o embaraço de quem quase estivera para ser moeda de troca. Felizmente que o pai recusara a transacção e o inglês acabara por encontrar um industrial de Braga que, sabendo o que são pechinchas, lhe pagou o pedido a contado e em libras.
- E depois?
Um grupo de curiosos tinha-se juntado à nossa volta e, antes que a rapariga pudesse responder, um homem de idade travou-me o braço:
- Eu trabalhei lá. Eu é que sei.
O novo proprietário acabara com as camélias, tinha manda­do fazer muito plantio de vinha e de pomar, pocilgas enormes, aumentos nas adegas, uma coelheira onde havia três mil coel­hos.
- Três mil?
- Ou mais! Tendo comida à farta os coelhos não se cansam de fazer a coisa.
Houve risos brejeiros, mas o homem continuou sem se descompor. A paga era razoável e tudo tinha corrido bem até fins de 81, começos de 82.
De repente, assim sem mais nem menos, despediram o pessoal antigo, contrataram outra gente, e só quando se começou a ver a pretalhada a andar para lá e para cá em grandes Mercedes, é que se soube que o novo dono era o Mobutu. Desde então andava tudo secreto, tudo muito escondido, os que lá trabalhavam eram de longe e tinham ordens para não falar a ninguém.
Com um gesto dei a entender que compreendia o seu azedume, e o ancião agarrou-me de novo pelo braço, baixando a voz em confidência:
- Ainda outra coisa. O homem de Braga pagou seis mil contos ao inglês para lhe apanhar a quinta, não foi? Mas por quanto a vendeu ele ao Mobutu? Diga lá.
- Não faço ideia. Doze mil? Quinze mil?
- Duzentos e cinquenta mil, meu senhor! Du-zen-tos-e-cin-­quen-ta-mil! E o filho da puta do preto dizem que passou logo o cheque, nem sequer regateou!